Pesquisa


Projetos Mais Acessados

  1. Comunicação e cultura na Johannes Keller Schule em São Caetano do Sul
  2. A Segunda Guerra Mundial no ABC e a trajetória de seus combatentes
  3. Ativismo feminista e questão racial
  4. Comunicação, Identidade e Memória na Comunidade Germânica no ABC
  5. Culturas e linguagem: metáforas em identidades, ritos e cerimônias nas
  6. Associações alemãs em São Paulo
  7. Punks do ABC: bandas, gangues e idéias de um movimento cultural...1980
  8. Risos e lágrimas:o teatro amador em Santo André na década de 1960
  9. O Grupo Teatro da Cidade: experiência profissional nos palcos do ABC..
  10. A alma feminina nos palcos do ABC: o papel das atrizes (1965 a 1985)

Todos os Temas
Todos os Projetos

Gabriela Rabelo

Gabriela Rabelo foi atriz do Grupo de Teatro da Cidade (GTC) de Santo André. Imagem do Depoente
Nome:Gabriela Rabelo
Nascimento:03/04/1943
Gênero:Feminino
Profissão:Atriz / Professora
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:Belo Horizonte (MG)

TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DE GABRIELA RABELO EM 08/07/2005

Depoimento de GABRIELA RABELO, 62 anos. 

IMES – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 08 de julho de 2005.

Entrevistadores: Herom Vargas e Tiago Magnani.

 

 

Pergunta: 

Comece falando a data e o local de seu nascimento.

 

Resposta: 

Sou toda dispersiva. Toda vez que você me perguntar uma coisa eu vou lembrar de outra. Isso me lembra uma peça, que tinha uma pergunta, do García Lorca, onde você nasceu, como fez aquilo. Eu nasci em Belo Horizonte, em 3 de abril de 1943, uma data palíndromo. Indo para frente ou para trás, o tempo é o mesmo.

 

Pergunta: 

Fale um pouco sobre a sua família, seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua infância.

 

Resposta: 

A família do meu pai é de Verona, ele é de Diamantina, uma região cheia de histórias, de músicas, de mistérios. Ele foi colega de Juscelino Kubitschek. É uma cidade que até hoje é interessante. A minha mãe era paulistona, de Botucatu. Eles tiveram 11 filhos, fui a décima e eles criaram nove. Se eu tenho 62 anos e sou a caçula, dá para ver que eles eram bem mais antigos. Meu pai era de 1897 e minha mãe de 1900. Alguns fatos históricos que são importantes para a nossa memória de cidadãos, para eles eram memórias de vida, e quando eles falavam, tinha um sabor de vida e não de coisas que foram. Isso vale para a Revolução de 1932. Belo Horizonte era uma cidade que, quando eu nasci, o nome antigo era Curral Del Rei, é uma cidade de 1897, também, uma cidade planejada. Quando eu nasci ainda se respirava os ares dos currais. Tinha uma vaca no quintal da minha casa. Logo depois a minha casa ficou ao lado da Faculdade de Filosofia da UFMG, mas o quintal da minha casa, eram casas de quintais muito grandes, e tinham de ser por que as famílias eram muito numerosas. Tinha vaca, burro, coelho, isso na casa da cidade, afora a fazenda. Ficava uma coisa meio natural. Era uma cidade provinciana. Mário de Andrade esteve em Belo Horizonte e escreveu uma coisa que nunca tinha pensado de lá, que foi uma cidade construída no final do século XIX e início do século XX, algumas coisas da cidade deixavam a gente respirar um pouco das coisas ecléticas, um pouco das coisas art déco, um pouco das coisas interioranas. E ao mesmo tempo a cidade é rodeada de montanhas, que dão uma visão diferente para o olhar.

 

Pergunta: 

Isso você percebe hoje ou já naquela época?

 

Resposta: 

Já naquela época tinha essa visão. As montanhas sempre me fascinaram.

 

Pergunta: 

Você ficou até quando em Belo Horizonte?

 

Resposta: 

Fiquei até os 20 anos, quando comecei a fazer teatro, fiz lá dois anos e meio de teatro universitário. Eu fiz e decidi que era teatro que eu queria fazer. Aí vim para São Paulo e comecei tudo de novo na EAD. Comecei como se não tivesse feito escola nenhuma e fiz três anos.

 

Pergunta: 

Sua família ficou lá e você veio sozinha?

 

Resposta: 

Na época, quando comecei a fazer teatro, estava no último ano do segundo grau, porque naquela época era científico, clássico e normal, eu fazia o científico, e fui fazer filosofia. A faculdade de filosofia, como falei, era perto da minha casa. Eu era uma aluna meio CDF, gostava, me interessava pelo assunto. No final do ano, como a minha casa era perto, era fácil almoçar em casa. Era um jeito diferente. O pessoal ia lá em casa estudar comigo e todo mundo meio que pegava, eu era a única que chegava na hora da aula, porque estava a duas casas da faculdade. O pessoal me elogiava muito. Eu inventei para os meus pais, mentira pura que havia ganhado uma bolsa para estudar filosofia em São Paulo. Na verdade eu ia fazer teatro, mas eu sabia que eles iam brigar.

 

Pergunta: 

Eles não iam aprovar?

 

Resposta: 

Fazer teatro? Nunca. Hoje em dia, para algumas famílias de classe média, mais conservadoras, fazer teatro tem um pouco de cheiro de televisão, de notoriedade, que pode dar um certo charme. Se o moleque gosta de jogar futebol, já pensou se ele fosse igual ao Ronaldinho? Pode ser um Ronaldinho, mas é uma loteria que a gente vive.

 

Pergunta: 

Antigamente não havia esse pensamento?

 

Resposta: 

Não. Antigamente teatro era teatro. Não tinha televisão. A televisão surgiu quando eu tinha uns 14 anos, sem videotape. A idéia de teatro era alguma coisa misturada com promiscuidade. A atriz era um pouco uma prostituta. E era uma coisa muito ruim pensar ter uma filha atriz. Não era um bom futuro. Até entenderem que era uma coisa séria e possível de se divertir e encontrar um grande prazer no sentido de inclusão social, demorou um tempinho.

 

Pergunta: 

E como surgiu essa vontade de fazer teatro, de ser atriz?

 

Resposta: 

Os meus domingos eram divididos entre missa e futebol de várzea, porque saía da missa e já ia para o campo. Adoro futebol até hoje. Tinha um time de Santo Antônio, com camisa e tudo, um grande time; e a gente tinha, toda a história do futebol de várzea é maravilhosa, era uma delícia. Futebol era coisa séria. E junto com o time eu tinha algumas amigas, especialmente duas delas, que a gente andava juntas. E nós passamos várias fases de leitura, Coleção Pequeno Polegar, Biblioteca das Moças, Coleção Cinzenta, a gente lia muito e ler era um grande prazer, como hoje tem novelas, a gente lia, uma ao lado da outra. Existia uma coisa que nos encantava. A gente lia muito e escrevíamos muito, porque a gente inventava as estórias. Os romances não bastavam para o nosso imaginário. Nós tínhamos de inventar os nossos romances. A gente ficava inventando e a gente percebeu que a gente tinha, passando por toda esse série de biblioteca, passando por essas fases, a gente sentiu que a gente queria seguir três destinos. Uma era ser pianista, porque duas estudavam piano e eu estudava violão. Outra coisa era querer ser detetive, porque nós já tínhamos passado pela Coleção Cinzenta, com Stanley Clark, Agatha Christie, então a tente tinha de ser detetive. E a gente seguia pessoas, a gente descobria crimes incríveis na cidade. E também a gente queria ser atriz, porque tínhamos visto O Cavalinho Azul, da Maria Clara Machado, com o Grupo Tablado. Eu me lembro que foi num instituto de educação, que até hoje é uma escola, onde tem um balcão e tem uma escadinha e eu sentei na escadinha. E quando teve aquilo de apagar a luz, abrir a cortina e o espetáculo começar, foi um transporte de um tamanho, que eu quis entrar. A Maria Clara fazia peças lindas. E a gente via muitos filmes também. O cinema americano já era o chefe do nosso imaginário. Eu olhei e falei que era o que eu queria ser. E como a gente inventava as nossas histórias, a gente representava as nossas histórias, a gente brincava, a gente representava a cena de ser uma dona de empresa que descia da escadaria para apanhar seu cavalo, a gente brincava de ser o outro para descobrir quem a gente era. No fundo, é isso a base do teatro. A gente queria ser três coisas: pianistas, detetives e atrizes, e as três viveram isso intensamente. Nós resolvemos sortear e ver o que cada uma ia seguir em nome das outras. A mim coube ser atriz, a uma coube ser detetive, ela é juíza e à outra coube ser pianista e ela é pianista. Então, cada uma de nós tinha de realizar esse destino para compensar outras duas. Já estava selado. Não sei se fosse diferente, acho que a gente, nunca pensei nisso, mas acho que a gente trapaceou, porque a Ana do Carmo tocava bem, a Maria Inês era uma inteligência brilhante, como é até hoje e eu acho que era uma coisa mais solta no mundo.

 

Pergunta: 

Você começou a fazer teatro no final do colegial?

 

Resposta: 

Sim. Eu fiz o científico porque um amigo meu tinha feito Alca Seltzer no científico e pensei: Oba, a gente vai poder fazer aulas de química. Fui para uma escola fazer e não teve. Sempre fui péssima aluna de física, tenho uma dificuldade de pensar nesse universo.

 

Pergunta: 

Quando você foi fazer faculdade, você fez na federal?

 

Resposta: 

Sim. Fui fazer filosofia porque talvez influenciada Sarcs, Simone, pelo peso que eles tiveram nas pessoas da minha geração. Eram pensadores que partiam da filosofia. 

 

Pergunta: 

E quando você veio para São Paulo?

 

Resposta: 

Vim igual Caetano Veloso: No dia que vim embora, minha mãe chorou muito. Esse é um hino. Quando eu falei que eu vinha, mentindo que tinha ganhado uma bolsa para fazer filosofia em São Paulo, meu pai demorou a aceitar que eu viesse para São Paulo, que eu saísse de casa, mas ele me acompanhou. Ele ficou uma figura destruída. E quando a gente é jovem, a gente é cruel. Eu olhei para ele e pensei mais no meu objetivo.

 

Pergunta: 

E você veio morar onde?

 

Resposta: 

Eu morei numa pensão. Quando entrei no teatro universitário de Minas, tinha um grupo de teatro experimental, um grupo muito legal, que tinha, entre outras coisas, o teatro experimental lá era muito legal e quando fui para o teatro universitário tinha um pessoal muito bom. Meu primeiro professor de corpo foi Clauseano, O Etiene Filho era a pessoa que nos ensina português, grande poeta e pensador. A Haydé era uma pessoa que ensinava o teatro feito na base da paixão e da seriedade. Foi muito bom. O pessoal do teatro experimental entrou no TU feito dessa forma, procurando dar corpo e consistência para o seu trabalho no teatro. Então, no primeiro ano veio o Rodrigo Santiago para São Paulo, no outro ano veio outro aluno, depois eu vim e depois nós tivemos uma leva de pessoas que saíam de Belo Horizonte, um pedaço veio para São Paulo, outro pedaço foi para o Rio. De jornalismo teve uma leva importante que criou o Jornal da Tarde. Quando ele foi lançado ele tinha uma diagramação bem diferente das outras e um jeito de noticiar as coisas também com outro sabor. Outro pessoal foi para o Rio e teve uma influência grande no Jornal do Brasil, que também tentou dar uma virada e ter um outro sabor de jornal, menos conservador, porque o conservadorismo nessa época era a favor da ditadura. Na imprensa, O Estado de São Paulo, sempre foi conservador, mas nessa época era um pouco mais libertário. Eu vim para cá, mas o Rodrigo Santiago, que tinha vindo antes e o Isaías Almada, que tinha também vindo antes de mim, me arranjaram essa pensão, que era dos pais da Míriam Munis, aquela grande atriz, na Avenida Angélica. Eu fiquei morando ali. Era uma pensão que tinha muita gente do teatro, como Dina Sfat, Isabel Ribeiro. Eu fiquei colega de quarto da Regina Braga. A gente não se conhecia e a gente descobriu que a gente tinha um monte de pessoas em comum, que a gente tinha morado pertíssimo em Belo Horizonte.

 

Pergunta: 

E veio estudar?

 

Resposta: 

Vim fazer exame para a EAD.

 

Pergunta: 

Que ano era?

 

Resposta: 

Era 1964.

 

Pergunta: 

Quem era da sua turma?

 

Resposta: 

Da minha turma teve um pessoal que participou da criação do GTC aqui de Santo André. Tinha a Sônia Guedes, o Aníbal Guedes, marido dela, Luzia Carmela. Na época o pessoal do teatro amador ganhava treino, os melhores atores ganhavam uma bolsa para estudar na EAD. A Luzia Carmela veio de Botucatu, onde ele havia ganhado um prêmio como atriz, a Sônia Guedes também, e ela foi morar com a Sônia. E tinha a história do trem, que era pontualíssimo, e a aula terminava, ao lado da Estação da Luz, e o trem era inglês na hora de passar. Eles falavam: Vai passar o trem. E aí saía o pessoal do ABC. A minha turma era muito boa. Luiz Carlos Arutim. A gente vai ficando velho e o passado vai ficando uma longa sucessão de cruzes. Luiz Carlos Arutim não está mais com a gente, também um grande ator, Alberto Buzique, que também era da minha turma, Francisco Solano, Sônia. Depois o outro pessoal que entrou, na outra turma, aí veio Analy Alvares, Petrin, foi chegando mais gente do ABC.

 

Pergunta: 

A EAD era a única escola de teatro ou era a melhor escola de teatro?

 

Resposta: 

Aqui em São Paulo? Eu acho que não havia outra.

 

Pergunta: 

Você veio para estudar na EAD?

 

Resposta: 

Era a referência.

 

Pergunta: 

Como se entrava na EAD?

 

Resposta: 

Tinha um exame. Era uma escola muito rigorosa e como toda escola de teatro, quando você tem a sorte de pegar uma turma boa, o curso anda. A minha turma era boa, não tinha ninguém de salto alto. Tem turmas que têm pessoas que são mais estrelas. A minha turma era tudo de CDF. A gente ralava, a gente tinha prazer de estudar e prazer de inventar coisas. A gente servia de laboratório de ensaio para o pessoal do curso de dramaturgia e crítica, a gente sempre estava disponível para tudo. E a gente trabalhava muito. Eu tinha de trabalhar para poder me sustentar, então eu trabalhei em várias coisas, em tudo que pintava. Eu trabalhei fazendo pesquisa de mercado, como secretária, em hospital, mas era possível trabalhar meio período.

 

Pergunta: 

E não podia trabalhar no teatro sem ser formada?

 

Resposta: 

Não podia. Inclusive na época, por coisas de família, tinha relação com o Chateaubriant, que era dono da Tupi. Tinha a porta da televisão bem facilitada. Aí veio uma carta do Zé Maria Alckmin, que é também por ligação de família, para o Edmundo Monteiro, que era o substituto do Chateaubriant, o que ficava tomando conta. Lá fui eu com a minha cartinha, oba, vou arranjar um trabalho. Cheguei lá, apresentei a cartinha, ele mandou um bilhete e fui falar com o cara do elenco. Ele falou que eu não podia trabalhar como atriz, só em serviço interno. Ele teria aberto a porta, mas não era o que eu queria fazer. Como atriz eu tinha a EAD para fazer e não podia atuar sem ter o meu diploma.

 

Pergunta: 

Vocês tinham a consciência de um certo conservadorismo da Escola de Arte Dramática? Nessa época já havia o Teatro de Arena. Vocês achavam que o Teatro de Arena era mais revolucionário do que a EAD, ou que o ensino da EAD era literário?

 

Resposta: 

Posso responder por mim e pela minha turma. A EAD tinha feito o Ru Rei, em 1969. Nós tivemos como professor Antunes Filho durante um ano. A EAD... Era um prestígio ser professor da EAD. Então, ao mesmo tempo em que nós tínhamos aulas que eram mais caretas, como dicção e estilo, nós tínhamos, como hoje eu falo que era uma grande escola, de podermos, uma mulher poder sentar numa cadeira e fazer uma peça de época sabendo sentar e sabendo se comportar, sabendo subir uma escada, sabendo virar uma capa. Esse tipo de coisa que a gente tinha para fazer as peças de elite, peças dos grandes personagens, sem nenhuma vulgaridade, com gestos, com meios-sorrisos. E ao mesmo tempo a gente tinha a possibilidade de ter uma aula com Antunes Filho, que era completamente diferente das aulas de José de Carvalho. No curso de cenografia a gente tinha Flávio Império, que fazia as roupas e criava o espaço. A EAD era muito consistente. E nós tínhamos, como professor de história do teatro brasileiro, Sábato Magaldi. Como um curso paralelo, nós estudávamos Freud, para falarmos da teoria do romance. Era maravilhoso, era muito bom. A gente tinha a presença de Nelson Rodrigues na escola para falar sobre o teatro. Não era conservador. O Alfredo Mesquita era um homem que conservava e sabia da importância da EAD. Para a nossa turma era muito bom.

 

Pergunta: 

Como foi seu contato com Sônia Guedes e com o GTC? Houve um convite?

 

Resposta: 

Não teve um convite. Eu sou muito amiga da Sônia até hoje e fiquei muito amiga do pessoal. Como eu morava sozinha, eu vinha muito para a casa da Sônia passar fim de semana. E a gente continuava estudando, continuava trabalhando. Quando o GTC nasceu, eu tinha visto outras coisas aqui que tinham me comovido muito, como a uma montagem de Eles Não usam Black-Tie, com o pessoal do SCASA. Era muito bonito ver a força que aquele espetáculo tinha naquele momento político em que a gente estava atordoado. A gente tinha uma amizade muito grande. Quando o GTC foi nascer, eu estava grávida e não podia entrar como atriz, mas muitas das reuniões foram feitas na minha casa. O papel que me caberia fazer, se não estivesse grávida, eu sugeri a Sônia Braga, que era muito amiga minha, com quem tinha acabado de fazer um filme. Falei que tinha uma atriz que era muito legal, e realmente ela era uma companheira de trabalho maravilhosa.

 

Pergunta: 

Qual filme você fez?

 

Resposta: 

Ocorrência. Era um curta metragem em que eu fazia o papel principal. A gente foi para um festival no Rio onde a gente ganhou vários prêmios, por direção, roteiro, ganhei o prêmio com atriz. E a Sônia tinha ficado como ajudante de produção e depois ela entrou dublando. Ela entrava de cabo-woman. A gente tinha feito outra coisa no cinema, outra brincadeira num curta, em que nós duas entramos como atrizes. E eu sugeri e ela acabou fazendo e foi uma coisa muito bonita.

 

Pergunta: 

E como você conheceu a Heleni?

 

Resposta: 

A Heleni eu já conhecia, porque ela é cria da USP, ela e o Ulisses. Eu dei um sorriso, mas não é com ironia. É que eu lembrei dela. Ela era baixinha e parecia uma formiguinha. Ela tinha uma cabecinha muito especial. Eu já a conhecia, e ela tinha ido para a França fazer o estágio com o Planchon e quando ela voltou para o Brasil, eu já a conhecia. Então, o trabalho dela, que foi acompanhado pelo Flávio, era uma coisa, era fértil. Tudo eram idéias brilhantes.

 

Pergunta: 

Como você sentiu o desaparecimento dela?

 

Resposta: 

A gente vivia a ameaça de que isso pudesse acontecer a qualquer um de nós. Uma coisa horrível da ditadura, se me perguntar isso, não sei o que posso te responder. Se fosse isso há 40 anos, acharia sua pergunta capciosa. A gente vivia sempre com alguma coisa ameaçando à nossa volta. A Heleni tinha passado na casa da Sílvia, deixado lá uma mala, caso acontecesse alguma emergência em que ela tivesse de sair. Ela tinha passado em minha casa e deixado lá também uma mala. Mas como eu militava num grupo político e ela sabia disso, na minha casa ela não deixou nada que pudesse comprometer, só roupas.

 

Pergunta: 

Que grupo era esse?

 

Resposta: 

Um movimento ligado a uma organização trotskista, cuja bandeira maior dele era que seria possível haver qualquer movimento revolucionário que não partisse do movimento de massa. Ele era muito ligado às tendências sindicais. Como os sindicatos eram ocupados por pelegos, a nossa opinião era que a gente devia ter uma atividade intensa dentro dos sindicatos, das organizações de massa, e que deveríamos lutar pela criação de um partido revolucionário, um partido operário.

 

Pergunta: 

Como se chamava?

 

Resposta: 

Não tinha um nome. Isso veio dar no PT, que é um partido, pensando marxistamente, expressão consciente do processo inconsciente das massas, que era aquilo que a gente acreditava. Mas a Heleni havia deixado na minha casa apenas uma mala com roupas. Se ele tivesse de fugir e tivesse de passar em alguns lugares para poder seguir, ela tinha deixado em alguns lugares coisas para escapar. Ela teve um ato, dependendo da perspectiva de quem olha, de extrema abdicação, de extrema generosidade, como de extrema loucura. Os filhos ficaram com o Ulisses e ela entrou para valer na luta armada. Acreditou nessa tendência, que não era a mesma tendência que eu tinha. O grupo onde eu militava não acreditava na luta armada como possibilidade libertadora. A gente achava que deveria ser um movimento restrito a uma classe, porque a gente não conseguiria fazer, pelas dimensões do país, um movimento que conseguisse chamar as massas para pegar em armas.

 

Pergunta: 

Quando a Heleni desapareceu, você estava trabalhando no GTC? Você chegou a trabalhar no GTC antes da estréia do Municipal?

 

Resposta: 

Não. Eu fui embora para a França, saí do país. A Guerra do Caça Cavalo foi quando eu entrei e eu fui assistente de direção do Celso Nunes.

 

Pergunta: 

O desaparecimento da Heleni foi posterior à saída dela do GTC?

 

Resposta: 

Foi.

 

Pergunta: 

A saída da Heleni, uma liderança forte, como ficaram os relacionamentos?

 

Resposta: 

A Heleni foi uma pessoa muito importante em relação a esse espetáculo, mas acredito que o grupo existiria sem a Heleni, porque a Heleni foi lá, não com a tentativa, me parece que não era esse, estou falando como sensação e não como opinião, mas que aquele não era o lugar onde a Heleni estava colocando o máximo da vitalidade dela. Ela já estava ficando muito ligada em outras coisas. O GTC está muito ligado à história dos atores daqui, ao teatro SCASA, ao pessoal que passou pela EAD e quis criar um centro profissional de teatro fora da cidade. Santo André não era tão ligada com São Paulo. Ainda havia alguns buracos no meio. A Heleni foi importante, mas não acredito que ela tenha sido indispensável. Foi marcante o fato de ter a presença dela, ter aquele trabalho, imprimiu uma marca, mas acredito que se não fosse ela, outras coisas teriam acontecido, porque continuam acontecendo sem ela.

 

Pergunta: 

E como foi a sua volta ao GTC?

 

Resposta: 

Eu continuei tendo relação com as pessoas porque tinha uma amizade muito forte. Quando voltei da França fui fazer esse trabalho, logo depois a gente fez um infantil. A gente fazia muitos espetáculos porque o teatro tinha muito público. Estranho, não é?

 

Pergunta: 

Como era a divulgação?

 

Resposta: 

Tinha uma coisa mais fácil de entrar em contato porque as pessoas se conheciam mais. Então, como fazer um trabalho de qualidade? O teatro ligado à escola sustentava o trabalho do GTC, mesmo antes de vir para cá. Quando foi feito no Teatro Carlos Gomes, foi feito O Barbeiro de Sevilha, outras peças que foram feitas, não era ainda no Municipal. O municipal nasceu de uma batalha com o Prefeito para poder criar um espaço de teatro.

 

Pergunta: 

E como foi a viagem para a Colômbia...? (Inaudível)

 

Resposta: 

O Evangelho Segundo Zebedeu tinha uma coisa, uma divergência, não entre nós dois, vou falar do Petrin e de mim, não entre nós dois, mas se a gente pudesse dar uma cara, digamos que a gente capitaneava duas tendências, cada um de nós, em relação ao trabalho do grupo. Quando você começa a trabalhar e cada vez fazer mais trabalhos, eu achava que as pessoas que vinham deviam fazer parte do grupo e a gente crescer. O Petrin achava que a gente deveria manter o núcleo, que era o Grupo de Teatro da Cidade, que estaria presente em todos os trabalhos e para cada trabalho seriam convidadas outras pessoas. Como eu já tinha tido essa coisa de sindicato, de participar de sindicato, então nós somos ambíguos, porque seremos empresários mas estaremos falando em grupos. Se vamos ser empresários, que sejamos empresários, vamos contratar, com décimo terceiro, carteira assinada. E o Petrin, mais pé no chão, tentava fazer outra coisa. Quando foi o Zebedeu, sem o Petrin é possível fazer uma peça? É possível. Aí o Taubaté e eu decidimos fazer o Zebedeu, que era um elenco muito grande, com música ao vivo, um monte de gente. A Sônia estava viajando.

 

Pergunta: 

Por que chamaram o Antonio Fagundes?

 

Resposta: 

Porque era o ator que precisava para aquele trabalho. Eu, pessoalmente, era a favor de fazer o Taubaté, eu queria que o Taubaté fizesse, mas ele acabou substituindo. Mas voto vai, voto vem, a gente perdeu. Na época não era o Antonio Fagundes que é hoje.

 

Pergunta: 

Ele foi porque ele era famoso?

 

Resposta: 

Não. Ele não tinha essa força de arregimentar público. O que o Fagundes tinha era ser um grande ator, como ele é até hoje. E quando ele veio, inclusive eu fui conversar com ele, ele falou que tinha um outro convite. Falei que nenhum convite ia ser tão bom quanto o nosso. Convenci que o nosso era imbatível. Ele ficou com a gente. É um grande ator, uma grande figura, um grande colega. A gente montou sem a presença do Petrin, a Sônia estava viajando, voltou e fez um pequeno papel. Era a Sílvia Borges, o Taubaté e eu, nós três segurando o pé do frango, de montar o Zebedeu. Nós montamos, foi muito lindo e aí nós fomos para a Colômbia. E quando a gente foi, a gente teve contato com o movimento de teatro da Colômbia, que era feito muito em cima de grupos. Se você queria fazer uma peça, você tinha de pertencer a um grupo, e tinha a Federação Colombiana de Teatro que foi um pouco como foi a Cooperativa Paulista de Teatro alguns anos atrás, hoje ela mudou de caráter. E lá fizemos uma temporada no Teatro de Cali, tivemos contato com Manuel Buenaventura, nos influenciamos por isso e chegando aqui, voltando para o Brasil, resolvemos tentar uma aventura parecida, de fazer uma criação partindo do empenho de todo mundo. Foi quando foi escrita Heróica Pancada, sobre a revolução de 1932, pelo Carlos Queirós Teles, mas partido da pesquisa. Todo mundo chegava com material novo.

 

Pergunta: 

Tirando o desaparecimento da Heleni, o veto desse texto foi o fato mais marcante provocado pela censura para o GTC?

 

Resposta: 

Foi.

 

Pergunta: 

Como foi?

 

Resposta: 

Foi um balde de água fria, porque quando nós voltamos e chegamos com esse espírito, o Petrin também se entusiasmou e achou que era possível ter uma outra relação, que era possível o grupo se abrir, que era possível a gente fazer um trabalho desse tipo e continuar com uma bandeira que era tão apaixonante e tão catalisadora quanto fazer teatro aqui. E a gente começou a fazer. E todo mundo, a gente botava a alma no trabalho. Quando a censura vetou o texto, eram meses de trabalho jogados fora. Era aquela coisa de deixem de sonhar seus idiotas, botem o pé no chão.

 

Pergunta: 

(Inaudível)

 

Resposta: 

Do Cláudio Campana. Ele ficou com uma dor. Ele ficou arrasado. E foi quando eu sugeri, para manter, uma peça infantil. Contei a história, eles gostaram e escrevi rapidamente Nem Tudo Está Azul no País Azul, que conservava um tom de revolta. Algumas coisas eu escrevi com tanta raiva, que falava que estava escrevendo só para botar para fora, para ficar livre disso. Tinha um rei azul ditatorial.

 

Pergunta: 

Fale mais um pouco de algum episódio que aconteceu nos festivais.

 

Resposta: 

Tem uma coisa que aconteceu com o Taubaté. Saímos uma noite para beber, não para encher a cara, mas para nos divertirmos e conversarmos. Quando a gente saiu, policiais vieram e ficaram querendo saber da gente, quem são vocês, o que são, policialescamente falando com a gente, aí o Taubaté conversou com eles e disse: “Sabe lo que mas, a mi no me gusta la policia”. Ele saiu dando cambalhotas na rua e os guardas não entenderam nada. Ele estava com uma tal felicidade de dizer que a gente não ia com a cara deles, era tão bom isso. E outras coisas que a gente viveu que eram muito importantes, era ver a importância de um teatro feito pela força dos grupos.

 

Pergunta: 

Durante a apresentação do espetáculo, como foi a reação da platéia?

 

Resposta: 

Uma pessoa me fez essa pergunta comentando de outra pessoa e vi que havia divergências.  A lembrança que tenho é de uma coisa muito caravesca, tanto que a gente saiu fazendo, e um monte de gente que fiquei conhecendo e mantive contato durante um tempo, como o Carlos Reis, o Buenaventura, e outras pessoas do Peru, da Venezuela, da Argentina, que a gente manteve um contato muito vivo, alguém falou que tinha sido fria a reação deles.

 

Pergunta: 

Após a apresentação do Hino Nacional Brasileiro, a platéia se manifestou de forma negativa?

 

Resposta: 

Não lembro.

 

Pergunta: 

Por que você acha que acabou o GTC?

 

Resposta: 

Talvez aquilo que mantenha um grupo de pé seja algo mais do que a vontade de algumas pessoas de trabalhar naquilo. Não havia uma opinião filosófica, política e estética que fosse mantida pelo conjunto das pessoas que trabalhavam lá. Aí, tornou-se uma coisa de um trabalho, mais do Petrin, Zé Armando, Sônia, e o que define um grupo de teatro não estava mais acontecendo. O trabalho em Santo André já tinha se desenvolvido, muita gente já tinha trabalho, como até hoje tem, mas aí a gente não tinha mais o objetivo. Esse já tinha sido alcançado. Outros só foram colocados no lugar.

 

Pergunta: 

Você morou aqui no ABC?

 

Resposta: 

Morei em Diadema um tempo. Uma casinha gostosa. Onde eu morei era no centro, tinha minha casa e a casa de cima e depois não tinha mais nada. O centro era um mercado aonde a gente ia, era uma coisa interiorana, muito pequena.

 

Pergunta: 

Como você vinha de Diadema para cá?

 

Resposta: 

De carro. Sempre tive essa facilidade do carro para poder me locomover. Dificultaria se não tivesse.

 

Pergunta: 

A gente pede para os entrevistados, no final, deixarem algum tipo de mensagem, idéias, alguma coisa que seja importante para você deixar gravado sobre a sua história de vida, sua experiência.

 

Resposta: 

Pensando no quadro em que esse nosso encontro acontece, que é dentro de um universo acadêmico, eu acho importante que esse universo valorize a questão do teatro, não por uma preservação do passado, mas por saber que a nossa estrada é determinada pelo caminho que foi percorrido. Então, o olhar para frente tem de ter uma consciência do que a gente tem nas costas. Uma coisa que, até hoje estava conversando com a minha filha, que sinto muita falta na geração de vocês, é terem uma consciência de que a humanidade só tem sentido quando a gente tem um projeto que engloba o conjunto. Isso vai pensar a gente como um ser planetário. É a primeira vez que a humanidade entra em cena na história. Até hoje a gente teve a história de algumas hegemonias, como a história da Grécia, da França. Agora não. Isso, se de um lado vem com a face ruim da globalização, por outro lado vem com a possibilidade, trazida pelas novas tecnologias, que a gente não sabe onde vai parar. A gente misturar essas coisas, essas técnicas, essa forma de registro, eu acho que pode ser legal.


Acervo Hipermídia de Memórias do ABC - Universidade de São Caetano do Sul